Flaviana Tannus - 1968
Traquejo para marcha
Eu os vejo como duas montanhas preguiçosas que, ao nascer, se espalharam e desenharam curvas deitadas. Eu os olho de cima. O esquerdo tímido, o direito mais atrevido. Uivam de dor ao apertá-los. Odeiam pose e gostam mesmo da nudez livre e esparramada. Com o tempo se deformam. Quase os mutilei. Até que decidi conviver com eles: meus joanetes.
Num momento de pausa dos picos de contágio da Covid, viajei ao Rio de Janeiro. Caminhei por quase três horas com calçado inadequado sobre uma superfície rígida ao redor da Lagoa Rodrigo de Freitas. Meus joanetes inflamaram, resultando numa metatarsalgia. A palavra traduz o sintoma: difícil escrever, falar e descrever a dor na sola dos pés, que piora muito com caminhadas. A dor persiste até mesmo para ficar em pé e, ao deitar, lateja. Com a crise aguda de metatarsalgia nos dois pés, fiquei impedida de continuar as caminhadas diárias. Para manter os exercícios aeróbicos, comecei a pedalar, aliás, voltei a pedalar.
Guardo a sensação de liberdade quando meu pai tirou as rodinhas de minha bicicleta. A partir dali, não precisava mais de adulto para me escorar e empurrar, nem do malabarismo de me equilibrar entre duas rodinhas. Logo experimentei sobre o risco e a delícia da velocidade e esperava os finais de tarde para apostar corrida com a garotada na ladeira íngreme da Rua Castro Alves em Campo Grande. Sem as mãos no freio, ladeira abaixo, angariei tombos, joelhos e cotovelos ralados, muito choro e poucas vitórias. Passados os dias, depois do susto da queda lá estava eu de novo com minha bicicletinha vermelha na linha da disputa.
Há anos não pedalava. Aos cinquenta e dois anos, aceitei subir novamente numa bicicleta. Desta vez uma bicicleta elétrica assistida por motor, o que significa que tenho ajuda para trechos com subidas. Aqueles em que o santo nunca ajuda como ajuda na descida. Sem a e-bike, não me arriscaria. Moro num local com trajeto de angulações íngremes.
Na primeira experiência de descida com a e-bike para depois subir, ainda não conhecia o traquejo das marchas e os níveis de velocidade, que seguem do eco ao turbo. Com as duas mãos no freio, ajustando a postura e projetando o olhar ora para baixo ora para a frente, algo invadiu meu pensamento: e se eu não frear? E se eu deixar a bicicleta correr como nas ladeiras da Rua Castro Alves? Como deslizar entre o frescor da aventura e o risco da queda? Em tempos de pandemia com meus calos protegidos, me calo diante do imperativo do risco e, na brincadeira de encontrar a medida da marcha e da velocidade, arribo meu tronco, solto a rigidez de meus braços e lanço o olhar para a frente. O barulho do freio anuncia o frescor da aventura, mas qual velocidade consigo experimentar?