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  • Foto do escritorFlaviana Tannus - 1968

Palavra no monjolo

Atualizado: 12 de fev. de 2021

Faltava pouco para as seis horas da manhã. A claridade já desbotava a escuridão. Entre um sussurro e outro, procurando palavras que ainda dormiam, arrastamos as cadeiras e deitamos o olhar na paisagem conhecida que nunca é a mesma. Enquanto meu olhar repousava sobre a névoa entre as montanhas, Ricardo me chamou a atenção para uma cena inusitada: dois pássaros de diferentes cores, tamanhos e espécies voavam em paralelo. O menor, talvez uma andorinha, se esforçava para alcançar o maior na pausa do sacolejo das asas. Ao alcançá-lo o pequenino o importunava com bicadas, estorvando a continuidade da rota traçada. Por segundos, ficamos acompanhando o trajeto dos pássaros. Ricardo, com sua observação precisa, afirmava que o pássaro menor tentava impedir que o outro atacasse seu ninho. Eu achei graça na cena, vi ali uma brincadeira, um atrevimento do pequeno pássaro, que, sem medo, incitava o outro a um gracejo. E ficamos por instantes com o olhar debulhado na divertida cena, até que ela se dissipou.


No dia anterior, em conversa solta, Ricardo falava sobre a dificuldade de emancipar-se e a passividade que existe na espera de que a emancipação irrompa para se livrar de alguma situação ou mesmo de alguém. A inércia da espera de que a libertação seja uma concessão vinda do outro. Do que será que ele falava? Dos outros ou dele?


Como a contemplação do voo dos pássaros fez aliança com a conversa sobre emancipação?


Imóvel por três horas na cadeira do dentista, soltei o pensamento na cena do voo. É fato que o voo das aves é emendado ao sentido de liberdade. De onde será que ser livre foi associado a condição alada? A expressão “ser livre é voar” talvez faça aliança com o ideal totalizante de experimentar a leveza de ir e vir sem nada, sem ninguém, sem tratos, sem acordos, sem amarras e poder agir como quiser no tempo e no espaço. Será que se emancipar é libertar-se do ideal de ser livre? Emancipar-se será se desocupar da ideia de liberdade? Ou quando emancipar se descola da ideia de liberdade de fazer o que se quer, como se ocupar, sendo livre?


Na cena do voo onde enxerguei um dueto, um joguete ou mesmo uma diversão, a palavra do Ricardo pousou decifrando a condição da espécie. Quem guarda a charada da cena? Como escutar o que o outro diz, sem desmanchar o que te capturou? O que pode brotar quando a sentença desocupa o recinto da verdade? É engenhoso se desocupar de saber.


Escrevendo palavras soltas para a composição deste texto, em vez de emancipação, escrevi enunciação. Quando a escrita falha, algo se desaloja e inaugura um outro campo. Vaza fagulhas do inconsciente. Ao falarmos podemos falhar. A Falha da fala parece ser a sentença que aferrolha ou liberta. Enquanto emancipação engenha libertação, enunciação derrama a palavra no monjolo. Nessa moagem de palavras, o que dizer quando não se sabe?

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