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  • Foto do escritorFlaviana Tannus - 1968

Errância como herança

No século XVIII meus antepassados maternos eram lavradores em Monte Córdova, vilarejo português onde nasce o Rio Leça, próximo à cidade do Porto. Domingos Antonio Pereira desgarrou da família em 1740 e migrou para o Brasil. Chegou no porto carioca e de lá foi para Nossa Senhora de Nazareth, atualmente Nazareno, em Minas Gerais. Eram tempos de Brasil colônia. Os novos descendentes viveram em Lavras, Três Corações, Cruzília, São Thomé das Letras e Baependi e em 1890, cento e cinquenta anos depois, a quinta geração no Brasil migrou para terras que margeiam o Rio Tietê. Naquele tempo mudar-se era determinante e quem migrava não retornava ao seu lugar de origem. Por que partir? Necessidade, oportunidade ou fuga? Como foi a viagem? O que carregou na mala? Como foi viver em outro continente? Meu bisavô, poeta-lavrador, escreveu Sereno na flor, pequeno tratado em rimas da errância de sua história.

Cem anos depois, 1990, o mundo sendo semelhante a uma aldeia, migrar é descomplicado. Pode-se ir e é possível retornar. Aos vinte e dois anos, casei e mudei para Campinas. Sem saber o que fazer com a minha vida profissional, Durval Checchinato, amigo especial, me abriu as portas para a escuta sobre a psicanálise. Iniciei a análise e os estudos de textos de Freud e Lacan. A princípio a leitura era inacessível. Com o tempo a obscuridade da linguagem abriu passagem a questionamentos.

Mas foi Contardo Calligaris, italiano que migrou para o Brasil e por aqui fez movimentos interessantes, que me aproximou de outra psicanálise. Às quintas-feiras, suas crônicas de escrita legível tecida com a linha da erudição ancorada no seu vasto conhecimento e interesse pela humanidade apresentavam opiniões políticas, escritores, filmes, artistas e provocavam interrogações. Não escrevia sobre a psicanálise, mas sobre os efeitos que a psicanálise provocou em seu modo de viver. De suas experiências, viagens e andanças cotidianas pela cidade, coletava detalhes triviais que descerravam janelas e iluminavam porões. Seus textos me causavam um certo desatino em que eu me desviava da sensatez. Houve um tempo em que lia sua crônica antes da caminhada matinal. Mudei a rota costumeira, conheci lugares novos e passei a explorar a cidade com novo talhe. Suas articulações libertaram ideias reprimidas. Sulcaram aberturas em minha posição muitas vezes dogmática. Mas o que mais me aguçava? Seu modo de viver errante. Aprendi a viajar com mala de mão, a andar sem rumo e a explorar o novo.

Vinte e dois anos depois, duas décadas de leitura semanal, em sua crônica de 6 de janeiro de 2021, Canetas transformaram a trivialidade em ritual no meu círculo familiar, Calligaris traçou a experiência das pessoas de seu círculo familiar e também da sua própria história com a caneta e o ato de escrever. Nesse relato Calligaris eleva o ato de escrever à mão como parte do encanto. E continua: como se, em cada caso, a caneta e os gestos transformassem a trivialidade cotidiana em algo sagrado, um rito. Nada de mais, escrever é sempre um pouco isso: conferir ao acontecimento a dignidade do registro.

Com a pandemia me tornei andarilha catadora de palavras que claudicam. Nessa perambulação capenga, o que falha movimenta e me livro do assento. No hiato me esbarro com a surpresa de quem migra. Nunca sei aonde vou chegar nem o que vou encontrar. Se de meus antepassados herdei a coragem de experimentar a partida, Calligaris me deixou a errância como herança. E escrever, assim como viver, não é nada de mais, mas espero que esteja à altura.





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