Corpo Emoldurado
Atualizado: 28 de set. de 2021
Ele lhe dizia que todas as coisas do mundo são feitas de pontos e linhas e que as cores são o recheio da forma.

Quarta-feira, 15 de Abril de 2020, 9h15 da manhã. Permaneci durante o período de aproximadamente uma hora de olhos fechados e vedados, perambulando por vários cantos da casa. Reconheci lugares e objetos com as mãos, e com os pés, a geografia do espaço. Sem o recurso da visão orgânica, o mundo perdeu o contorno. E meu corpo também. Com o corpo despovoado das imagens, ruídos germinaram vibrações sonoras, como a afinação de instrumentos no ensaio para um concerto. Os efeitos provocados no corpo foi um exercício para escrever um pequeno conto proposto por Cíntia Moscovich na oficina de criação literária online que participo durante o tempo de isolamento obrigatório. O que acontece quando o contorno do mundo e do corpo se fundem? O que emerge da experiência do corpo que flutua com os pés no chão? Sem a visão como o mundo é capturado? O que é ver? A partir de tais questionamentos e antes de avançar na proposta deste traçado, prossigo com outras investigações: Como um sujeito olha o mundo sem a função do órgão? Qual a diferença entre ver e olhar para a psicanálise?
Um breve conto de ficção brotou dos efeitos provocados no corpo. A experiência marcou ritmo para sondar sobre o lugar do corpo na prática clínica em tempos de isolamento imposto pela pandemia em que o setting analítico migrou para a realidade virtual, ambiente possível a psicanalistas e analisandos prosseguirem.
Quando nos referimos ao corpo há várias árias: se o escritor afina um corpo para o personagem e o recheia com traços singulares, o psicanalista escuta a fal-h-a que escapa do corpo inconsciente. Esta melodia começa com o nascimento. O bebê antes de ver é embalado pelo olhar e pela voz do outro. Quando Lacan nos apresenta sua partitura sobre a pulsão escópica e invocante, solfeja nova dialética na constituição do sujeito. Ao pousar olhar e voz no corpo, território das pulsões, articula a com-posição do corpo sem a ligação a uma parte no corpo. Neste arranjo, Lacan vai ensaiar que olhar não é ver ao nível dos olhos, do órgão. Como uma metáfora, esboça que o concerto de um corpo acontece em intervalos e pausas (entre sujeito e órgão) que grafam a ortoépia do desejo.
Retornando ao questionamento sobre o lugar do corpo no atendimento virtual. Na condição on-line o espaço de escuta tem um novo arranjo: a espera pela abertura da porta, o acesso ao espaço físico, assim como a indicação da poltrona ou divã migram e o analisante decide onde irá pousar seu corpo. O paciente está em outro lugar. O sigilo não é mais garantido pela vedação no consultório físico do analista, mas por um cuidado que analista e analisante devam se preocupar para que a análise flua em associação livre. Quais os efeitos quando analisante em associação livre sofre interrupções na comunicação? Como fiar palavras soltas? Como escutar um concerto com sons desconjugados?
É considerado setting analítico aquele no interior do qual as transformações subjetivas se produzirão. A noção de setting é colocada em questão nesta condição online. A passagem do atendimento presencial para o virtual pressupõe um deslocamento de lugares e propõe uma reinvenção. É fato que a presença virtual expõe a imagem de partes corpo emoldurado numa tela, mas o timbre da voz se mantém. Sem o corpo presente, para onde se dirige a fala e o olhar do analisante? O que da clínica fica preservado? Uma análise se desenrola a distância? O que esta realidade convoca do olhar e da escuta? Neste novo cenário a prática clínica se transforma num verdadeiro estúdio. Como num estúdio de música. Neste estúdio do setting virtual analista e analisante ensaiam a prática munidos da articulação da palavra atravessada pela tela. Avançam e recuam, mas reinventam a psicanálise. Será que posso arriscar sublinhando que como solfejo, a palavra é o organismo vivo de um processo analítico a distância ?
Para interrogar sobre a prática clínica, recolhi da experiência da escrita de ficção, em que ao fechar os olhos, o contorno do mundo e do corpo se dissipam, e o texto que brota é marcado por uma aposta: lançar o corpo a flutuar na experimentação! Experimentação flutuante parece ser o dispositivo da clínica na atualidade, pois passa a ser o único formato possível de prosseguir com a psicanálise em tempos de isolamento imposto pela pandemia. Se a escrita criativa nasce dos efeitos que a experimentação provoca no escritor para a composição do corpo do personagem, a psicanálise se reinventa ao acolher o corpo emoldurado para que as palavras urjam como afinação dos instrumentos para a com-posição de um concerto.